[Escritora de quinta] O gênero dos brinquedos

17:34 Andrizy Bento 0 Comments


"Em pensar que se seu sobrinho fosse sobrinha, agora estaria gostando de princesas, não de super-heróis".

Errado. Se o Eloy fosse Emily ou Adrienne (não lembro bem qual foi o nome escolhido pela minha indecisa irmã), agora ela também estaria curtindo super-heróis. Não sei qual é a dificuldade que as pessoas tem em entender que meninas também gostam de super-heróis, não apenas de princesas. Esquecem que quem influenciou o Eloy a gostar de Homem-Aranha foi justamente a tia que, um dia, foi uma menina que gostava de super-heróis na infância e que continua gostando na vida adulta.

Alguns anos atrás, minha irmã, meu sobrinho e eu  estávamos em um loja de brinquedos no shopping. Ficamos intrigados com um senhor que puxava sua filha pelo cordão da blusa como se ela fosse um cachorro em uma coleira. Como se não bastasse isso, no momento em que o Eloy escolhia um novo boneco do Homem-Aranha para integrar a sua coleção, a menina se aproximou e, entusiasmada, começou a pegar os bonecos de heróis das prateleiras. O pai, que a puxava pela coleira, disse a ela para soltá-los imediatamente.

- Você não é menino pra brincar com boneco de herói. Você é menina!

O Eloy, ainda muito pequeno para entender como as coisas funcionam nesse universo complicado de meninos, meninas, estereótipos, brinquedos categorizados por gêneros e padrões impostos pela sociedade, disse a ela:

- É, você é menina, não pode pegar os bonecos.

Eu o repreendi no mesmo momento, chamando a sua atenção para o fato de que eu, sua tia, foi quem lhe apresentou seus tão amados heróis e que meninas brincam com bonecos de super-heróis, sim!

Certamente o homem ouviu, mas não tive o menor interesse em desviar o olhar do meu sobrinho para ele a fim de conferir sua reação. 

Minha irmã completou:

- Você não tem uma boneca da Elsa do Frozen?

De fato, uma atitude de minha irmã que admirei muito foi o fato de ela comprar uma boneca para o meu sobrinho. Muitas mães torceriam o nariz, diriam que jamais iriam comprar uma boneca, ainda mais uma princesa para seus filhos, afinal isso afetaria drasticamente sua masculinidade no futuro. 

Sim, claro. Pois bonecos de heróis e desenhos de princesas exercem grande influência na orientação sexual de uma pessoa durante a infância.

Por isso meu pai era zeloso em não me deixar assistir filmes de heróis... 

Mentira. Foi ele quem me influenciou a gostar de histórias em quadrinhos e animações de super-heróis. Colocava minha irmã e eu no colo para assistirmos juntos ao seriado kitsch dos anos 1960 do Batman nas manhãs da Rede Manchete. Ligava a televisão bem cedo, no sábado, para vermos o desenho animado da Liga da Justiça.

Era um DCnauta. Jamais me censurava quando eu vestia uma capa e fingia ser o Superman. O máximo que ele dizia é que eu tinha que ser a Supergirl. Eu rebatia, dizendo que queria ser o Superman. O Superman eu conhecia e adorava. Eu não conhecia muito a Supergirl a ponto de querer ser como a personagem.

Meninas gostam de super-heróis. E não há nada de errado em meninos gostarem de Frozen e outros desenhos de princesas.

Embora eu não seja uma grande fã de Frozen, sou extremamente grata a heroínas fortes e corajosas como Anna e Elsa e o que elas podem representar para meninas e meninos que assistem ao desenho. Especialmente no clímax, quando Anna percebe que um ato de amor verdadeiro não precisa ser necessariamente um beijo de sua alma gêmea. Pode ser também se colocar na frente da irmã e impedi-la de ser assassinada pelo grande vilão da história que é justamente o príncipe encantado. Essa subversão dos padrões e estereótipos é realmente admirável em um desenho da Disney.

Mas há aqueles que preferem a manutenção do arquético do herói galante, forte e intrépido e da princesa que é uma donzela em apuros esperando ser salva por seu príncipe encantado. O homem forte, a mulher frágil. O homem que pode ser o que quiser. A mulher que deve apenas cuidar do lar.

Li algo muito interessante, por esses dias, na (pasmem!) aba para comentários de um artigo na web, que falava sobre os brinquedos para meninos e meninas. É sabido que, durante décadas e ainda hoje, na cabeça de muitos pais, carrinhos, aviões, naves espaciais, lego e bolas são brinquedos para meninos. Bonecas, panelinhas, fogõezinhos são brinquedos de meninas. Era algo que o artigo enfatizava como sendo um conceito antiquado e até nocivo na sociedade atual. Um dos comentários dizia o seguinte: aos meninos, é ensinado que devem sonhar. Às meninas, que devem se conformar e colocar os pés no chão

Já havia pensado sobre isso, mas não nesses termos. Achei precisa a forma como o internauta colocou. Aos meninos, o direito ao sonho de ser piloto de avião ou automóvel, jogador de futebol, astronauta, engenheiro ou arquiteto. Às meninas, é sugerido que aceitem que sua função na sociedade limita-se a ser dona de casa e mãe dedicada.

E, ao crescermos, o que vemos são homens que ainda colecionam carrinhos (e dão valor absurdo e desmedido a essas coleções), jogam futebol nos fins de semana e fazem campeonato de videogame com os amigos enquanto a esposa prepara o jantar. As mulheres, além de prepararem o jantar, cuidam da casa e dos filhos, contam com a ajudinha do marido para tal (seu marido te ajuda nas tarefas domésticas? é a famigerada pergunta que têm de ouvir) e ai delas, se alguém vê-las brincando de bonecas. Vão imediatamente concluir que elas precisam ser internadas em um sanatório com o máximo de urgência. Não, não é neurose. Mas experimente brincar com uma boneca no auge dos seus 20, 30 anos. Você vai ouvir de muitos homens babacas - e de mulheres babacas também! - que você já passou da idade de brincar. Que está na hora de casar e ter filhos ao invés de brincar de bonecas. Só lhe é permitido brincar se for com seus filhos.

A ideia de separar brinquedos por gênero remonta a uma época sombria, em um passado (assustadoramente não tão distante assim), em que a mulher realmente não tinha o direito de sonhar alto. As bonecas e as réplicas de utensílios de cozinha tinham a função de reforçar a ideia de que esse era o seu futuro papel na vida. Em suma, existiam para orientá-las a seguir esse caminho seguro, de mulher de família; de prepará-las para serem exímias donas de casa e mães.

Portanto, é um absurdo que, em uma época em que as mulheres começam a ganhar cada vez mais espaço na sociedade, tendo muitas delas rejeitado o papel de esposa e mãe, optado por priorizar a carreira, adquirir independência financeira e executar tarefas conhecidas no passado como trabalho de homem, ainda se perpetue a ideia de que brinquedos tem gênero.

Nesse mesmo artigo em que li um comentário tão sensato a respeito de qual é o fundamento por trás dessa equivocada separação entre brinquedos para meninos e brinquedos para meninas, vi mães dizendo que suas filhas brincariam de boneca e panelinhas, sim, pois já tinham de aprender a cuidar da casa desde cedo. E que legos e carrinhos poderiam guiá-las por uma direção errada, fazendo de suas meninas mulheres-macho (sic), que era o dever das mães contribuir e zelar para que as meninas de hoje - nesse mundo de conceitos tão deturpados - sejam estritamente femininas.

E, obviamente, vi pais alegando que seus meninos brincariam com bolas e carrinhos. Que meninas não podem jogar bola, pois o futebol corrompe sua feminilidade. E que menina tem mais é que brincar de boneca mesmo.

O Natal acabou de passar e eu gostaria de. novamente, neste texto, recordar meu saudoso pai. Eu adorava os brinquedos com que ele me presenteava no Natal. Minha mãe sempre se encarregava de comprar os presentes que minha irmã e eu pedíamos. Já meu pai... Este me surpreendia. Seus presentes eram sempre inesperados. Os brinquedos que ele me dava, estimulavam minha imaginação, minha inteligência, meu lado artístico e até meu lado atleta. Jogos de cubos e blocos, raquetes de tênis, bolas, cordas de pular, kits de médico, fitas para ginástica ritmica, cubos mágicos e até uma gaita de boca. Desse último, eu nunca me esqueci. 

Até inconscientemente, com seus brinquedos inocentes e estimulantes, meu pai me ensinou a sonhar.

Obs.: E, só pra constar, a bonequinha da Elsa do Eloy, durante muito tempo, deu uma surra no Homem-Aranha, além de dor de cabeça para seus Wolverines, Batmans, Homem de Ferro, etc...



*Salut*

0 comentários: